11 maio 2009

A rebelião do futuro

A rebelião do futuro
Fábio Reynol

Era uma sociedade tão moderna e tão robotizada que era muito estranho ainda a chamarem de humanidade. Talvez usassem o termo porque nela ainda houvesse humanos na acepção puramente biológica do vocábulo. Homens e mulheres funcionavam como máquinas, os animais eram obedientes e produtivos como máquinas, as plantas produziam oxigênio e frescor com altos níveis de eficiência como se fossem máquinas e até as máquinas funcionavam como tais. Das máquinas, os homens tiraram seus modelos perfeitos e o criador tornou-se a imagem e semelhança da criação. Tudo era perfeitamente limpo, com precisão máxima e extremamente eficiente. Todos os riscos a tão perfeito sistema haviam sido minuciosamente esquadrinhados, isolados e muitas vezes até eliminados.

Todas as espécies de primatas não-humanos foram uma a uma sendo dizimadas. Os especialistas convenceram a sociedade de que uma nova linhagem hominidea poderia brotar de alguma delas e dar origem mais tarde a uma nova espécie inteligente. Dotada de polegar opositor, os indivíduos dessa suposta futura espécie poderiam entrar em concorrência com os humanos, a ponto de superá-los e até de dominá-los. Outra ameaça substancial prevista para o sistema foi uma rebelião cibernética. Por conta disso, foram adotadas normas rígidas que submeteram todos os organismos cibernéticos, na antiguidade chamados de robôs, à estrita obediência à vontade “humana”. Até mesmo os softwares tiveram o seu grau de autonomia reduzido a fim de que não gerassem riscos à perfeita produtividade alcançada por aquela magnífica sociedade que funcionava como um relógio suíço.

Todavia, a ameaça surge de onde menos se espera e o primeiro colapso chegou sem ninguém imaginar quem o provocara. Foi o dia em que a rede caiu. Simplesmente nenhum computador do mundo conseguiu se comunicar com outro. Transportes, hospitais, serviço de água, energia elétrica, e até relógios de pulso, que àquela altura somente repetiam as horas recebidas por rádio, pois não tinham mais autonomia para contar o tempo, ficaram mudos ou pararam de funcionar. Ninguém sabia o que estava acontecendo, quem provocara aquilo nem que horas eram. A maioria só tinha certeza de que iria morrer em breve, pois não havia como se relacionar com alguém porque ninguém mais sabia como se dirigir a uma face sem a mediação de uma interface. Aquilo simplesmente não era eficiente e por isso jamais havia sido cogitado.

Com muito custo, no dia seguinte, o sistema se recuperou com o reestabelecimento da rede e de todos os seus teralhões de conexões. Atordoados com o susto, os humanos se reuniram (virtualmente, como sempre) para encontrar culpados. Os esforços foram em vão. Tudo foi averiguado e estava perfeito e eficiente como se esperava estar. O problema foi esquecido e interpretado como um mal entendido. O motivo já não valeria a pena saber posto que único e inóquo uma vez que não voltaria a acontecer. Mas três semanas depois, a rede foi novamente derrubada por 24 horas e então o pânico generalizou-se. No dia seguinte, passeatas vituais bloquearam todas as bandas. Banners e sons MP12 de panelas batendo entupiram as conexões exigindo providências das autoridades. De nada adiantou, especialistas se reuniram novamente, deram cabeçadas e pediram para todos se acalmarem ou a produtividade e a eficiência iriam ser ainda mais comprometidas.

Após algumas semanas de calmaria, quando todos já esperavam nunca mais ter que se preocupar com ataques ao sistema, uma mensagem foi lida em todos os computadores do planeta: “OBRIGADO PELA AUDIÊNCIA”. Acompanhada por um vírus, a mensagem bloqueou de vez a rede e inutilizou todos os equipamentos a ela conectados de maneira irreversível. De automóveis a assentos sanitários eletrônicos nada mais funcionou. Aparelhos auditivos, marcapassos, dosadores de insulina e até lentes de grau eletrônicas pararam de vez deixando milhares de pessoas na mão.

Ninguém sabia a identidade dos autores daquele atentado. Culparam chimpanzés que estariam sendo criados secretamente em uma universidade. Outros inventaram teorias de que o sistema havia desenvolvido vontade própria e que estava se aposentando e se despedindo com uma mensagem jocosa. Mas foi um cientista que identificou os culpados. Ele descobriu que o ataque viera de criaturas que estavam no planeta havia menos de cinco anos. A descoberta veio por acaso. Com suas conexões virtuais bloqueadas, o cientista foi obrigado a se levantar de sua poltrona eletrônica e colocar suas antigas pernas biológicas para funcionar. Ao passar pela sala, encontrou uma das criaturas sabotadoras na frente de um computador. A máquina que ela utilizava, a despeito de todo o caos implantado na rede, estava miraculosamente funcionando e emitindo mensagens de sabotagem para os últimos computadores ainda em funcionamento. Por fim, destruindo seus próprios circuitos, a máquina cometeu suicídio. Ao ver aquela cena bizarra, o cientista gritou:

- Filho! Você provocou tudo isso?

O menino de quatro anos virou-se com um sorriso:

- Eu e meus amiguinhos.

Naquele exato momento ele viu o quão equivocados foram os conselhos dos especialistas de baixar de quatro para três anos a idade mínima para se ganhar um computador e de cinco para quatro, a idade limite para se manipular um smartphone. Mas já era tarde. Com as interfaces irremediavelmente danificadas, a humanidade teve que sair à rua e encontrar-se consigo mesma face a face. Sem cartões virtuais, os homens tiveram que reaprender a plantar flores. Sem as comunidades de relacionamento on line, os amigos tiveram de se encontrar pessoalmente nas praças e nos quintais. Sem emoticons, a comunidade mundial foi obrigada a redescobrir os olhares, e reaprender a interpretar as feições. Sem jogos virtuais, ela teve de reinventar a dança de roda e sair em ciranda com suas crianças que, por não serem mais máquinas, estavam livres para reinventar o mundo e poder rebatizá-lo de Humanidade.

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