22 novembro 2007

O Fiscal - Capítulo IV e último

Termina aqui a curta e emocionante novela luso-brasileira sobre a língua que temos à boca.

Mas a Relação de Língua de Ana Pessoa e seus pseudônimos com o Diário da Tribo deve continuar enquanto Portugal estiver na península e o Brasil permanecer colônia.

Cá com vocês, o último, final e derradeiro capítulo vindo diretamente da terra de Caminha para a terra que não caminha.

Grande abraço a Ana e às Pessoas de Portugal.

Fabio Reynol
Cia. das Índias Orientais de Olhos Puxados e Peitos de Fora

O Fiscal
Capítulo IV - Ana Pessoa
Veja como tudo começou: Capítulo I

Depois lembrou-se do que o trouxera ali e, antes que a mulher falasse outra vez, apressou-se com a acusação: "A senhora fala mau português!". A autora gargalhou da cozinha, onde começou a preparar um chá. A porta entreaberta deixava ver o seu riso não contido e o homem corou de raiva. Respondeu misteriosa: "Isso não existe, senhor fiscal!" e o homem desesperou com aquela afronta. Saltou no sofá como um sapo: "Como assim, senhora?" e a mulher retorquiu calmamente: "Não há mau nem bom português, senhor fiscal. A língua é de quem a fala!".

O fiscal cortou a conversa com um gesto próprio de maestro perante a orquestra e disparou num compasso acelerado apontando o dedo indicador para o tecto: "A senhora é uma assassina de palavras: diz fato com um "c" ao meio, escreve ótimo com um "p" ao meio, são tiros directos no coração das palavras!". A mulher lançava a cabeça para trás para que as gargalhadas saíssem fluidas. Depois regressou à sala com um tabuleiro dançando nos braços ao som das chávenas que batiam delicadas nos pires.

Estavam agora sentados frente a frente, ela igual ao sol (cabelos eriçados como raios e o corpo avolumado, muito convexo) e ele igual a uma lua quase nova, minguando ainda (cabelo a escorrer pela testa e a coluna dobrada para a frente, um pouco côncavo).

Ela disse quase maternal que não era criminosa, que o português tinha vestígios de uma língua antiga e concluiu sem mais explicações: "Mas os polícias não têm de saber latim, não é assim?". Enquanto o senhor fiscal barafustava dizendo que não era polícia, a senhora espantava-se com a sua nova frase rimada. O homem escreveu no seu bloco: "problemas graves de isolamento, diz que português é latim". Depois fechou o caderno com uma violência teatral e impôs-se: "Minha senhora, eu sou o fiscal de palavras!".

A mulher olhou-o como se o visse pela primeira vez e o homem assustou-se com aquele olhar, saltou novamente no sofá e perguntou rápido: "Que foi?". A mulher abriu muito os olhos e depois os braços (a chávena muito equilibrada na mão direita, o pires pousado na esquerda). "Senhor fiscal, acabo de descobrir a sua palavra!" e o homem, um pouco mais curvado do que antes, repetiu várias vezes: "Como é que é?".

A autora sorveu ruidosa o seu chá e disse como quem revela um milagre: "Desumbigar. O senhor fiscal precisa de se desumbigar!". O homem estava confuso, repetiu mais uma vez a sua pergunta e a mulher esclareceu cheia de poesia: "O senhor fiscal precisa de sair de dentro, de se abrir ao mundo, de destorcer o cordão umbilical, de subir do ventre até aos olhos, de saltar para fora".

Fez-se silêncio à excepção do chá que continuava a estalar nos lábios da senhora. A palavra estranha ao ouvido regressava ao tímpano do homem, ganhava volume na boca, tinha um sabor qualquer a infância. O fiscal constatou: "Essa palavra não existe!", mas a mulher encolheu os ombros despreocupada. "Agora que eu a disse, passa a existir!".

O homem saltou outra vez: estava indignado. Abanou a cabeça e o bloco de notas no ar e, enquanto abria o caderno, dizia ameaçador: "A senhora pode ir presa por isto!". Ordenou muito formal: "Nome completo e profissão" e a mulher obedeceu prontamente: "Maria Apalavrada, inventora de palavras.".

A mão do homem congelou no bloco de notas. O fiscal ironizou ainda: "Ai sim? E que palavras inventa a senhora?". "Todas as que não existem e deviam ser inventadas!", respondeu criminosa a autora. O verbo desumbigar reapareceu no ouvido do homem e ele desejou secretamente que a palavra existisse. A mulher achou que tinha ganho um cliente por isso discursou: "Invento e vendo palavras. É, de facto, um óptimo negócio porque as pessoas precisam de se exprimir e não têm palavras. Você precisava do verbo desumbigar para organizar o seu pensamento. "Desumbigar" é o seu verbo, senhor fiscal! Há uma palavra para cada um de nós!".

Quase sem querer o homem riu e ela riu com ele.

Só então o homem tirou o chapéu e a mulher brincou dizendo: "Um negócio de tirar o chapéu, não é, senhor fiscal?" e ele riu com aquela frase tão bem dita. De repente, o senhor endireitou as costas, era agora mais homem do que fiscal, e quis saber: "E a sua palavra, qual é?".

A mulher sorriu o seu melhor sorriso. "Eu também tenho um verbo: inversar! Preciso do inverso das palavras, de inventar versos, de inverter o pensamento. Toda eu sou versos invertidos!".O homem recostou-se no sofá, já não saltava, as palavras ganhavam subitamente um outro sabor.

E foi assim que naquela tarde, o senhor fiscal e a inventora de palavras viram o inverso de um no outro e gostaram do que viram. Ele desumbigou e ela inversou, entre os dois havia um fio invisível de sílabas que os ligava.

No final da noite já não se sabia quem era quem, a língua de um era a língua do outro.

FIM

Um comentário:

Fátima Campilho disse...

Olá Fábio!
Hoje fui conhecer a revista eletrônica. CARACA! Sofro de enxaqueca, já vi estrelinhas e faço tratamento há dois anos. Melhorei, mas parece que estou perdendo a memória e facilidade que tinha em usar as palavras!
Ando sem tempo e cada vez mais lerda!
Rssssssssssssssssssssssssssssssssssss
Depois volto para ler O Fiscal.
Vá ver minhas fotos do Fórum das letras em Ouro Preto.
Abraços.