29 outubro 2007

A Greve das Vacas

Era um país em que se mamava muito. Mamavam nas ruas, nas calçadas, nas repartições públicas, nas privadas, nas praças, nos bancos, nos cofres dos bancos, nas câmaras e nas antecâmaras, nos palácios dos governos e até nos tribunais. Era senador mamando em jornalista que mamava em empreiteiro que mamava em cofre público que mamava no povo. Cada um contava com as suas respectivas tetas que, para o cumprimento do ato de mamar, não eram as próprias, logicamente, mas as de outrem ou “outrens” dependendo da capacidade sugadora do mamífero.

Um senador, por exemplo, podia contar com um rebanho leiteiro gigantesco, enquanto um vereador de cidade pequena sugava no máximo umas oitocentas tetas por dia. Para ser prefeito, governador ou presidente o sujeito tinha que ser lactodependente a ponto de sugar quantidades exorbitantes em uma única mamada. As tetas mais magras eram a dos pobres os quais eram mais sugados do que sugavam. Por mais secas que fossem, as tetas dessa parcela da população sempre eram cada vez mais espremidas, graças às leis que vereadores, deputados e senadores inventavam para extrair sempre mais uma gota daqueles que não mamavam nada.

Tudo escorria muito bem para os grandes mamadores até que um empresário espertinho passou dos limites. Para garantir uma mamata maior, ele adicionou soro e soda cáustica ao seu produto que, por coincidência, era o leite. Não aquele leite que os poderosos sugavam, mas o líquido branco que saía do úbere das vacas e que de vez em quando parava na mesa dos pobres. Foi aí que o latão entornou. Inconformada com a adulteração do fruto de suas glândulas, a parte mais consciente e lúcida da sociedade resolveu reagir. As vacas se uniram e fecharam o fluxo de suas mamárias. Nenhuma gota seria outra vez ordenhada naquelas tetas.

Os mais afetados pela greve foram, é claro, os pobres. Os grandes mamadores contavam com tetas demais para sentir falta de um líquido branco calcificado. Enquanto isso, na outra ponta da cadeia alimentar, sem leite para beber e tendo que dar o seu ao governo, os pobres começaram a contar somente com a própria teimosia para sobreviver. Foi quando um desfavorecido (o governo adorava usar essa palavra para designar um pobre*) foi despertado pelo movimento bovino-feminista. Pela primeira vez em décadas, ele pensou e pensou firme: “e se seguíssemos o exemplo das vacas?”.

A idéia se espalhou mais rápido do que droga na Zona Sul, em poucos dias o povo sem acesso aos lactários de fato, fecharam as torneirinhas dos lactários de direito. Estavam decididos a não deixar mais ninguém meter a mão em seus bolsos. Que arranjassem outros mamilos! E começaram a pedir satisfação dos poderosos. Queriam saber por que as votações que beneficiavam certas figuras tinham prioridade na câmara; por que não existia cadeia para quem mamava muito, por que o empreiteiro pagava a conta do senador que pagava a da jornalista que colaborava com o banqueiro... por que..., por que..., por que... ????? As elites começaram a ver seu leite azedando e as antes gordas tetas da nação secando e secando. Chegou o dia em que a mamata finalmente acabou.

Sem acesso aos meios ilícitos, os corruptos perderam o interesse em ocupar cargos públicos e, pela primeira vez, o povo pôde ver governantes cumprirem o que haviam prometido em campanha. Os pobres ficavam cada vez menos pobres e os super-ricos tornaram-se apenas ricos. Podia-se dizer que aquela era uma nação feliz, com exceção da alta incidência de osteoporose, uma vez que as vacas nunca mais cederam o seu leite aos humanos daquele lugar.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a vida real será mera coincidência, mas a maior esperança deste escritor continua depositada nas vacas.

* Por outro lado, ninguém chamava um rico de “favorecido”. Nota do pensador.

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu amigo,(desculpe a intimidade,mas o considero um amigo.)como sempre te mostrastes um mestre com as idéias e as palavras.
Aqui no sul(RS),agora descobriram uma baita fraude no Detran,muitos em muitas têtas.
Seria bom que a "vaca estadual"também fizesse greve aqui.
Muito obrigado e continue assim,sempre melhorando o que não pode ficar melhor.(tu consegues)
João Batista Felisberto9joao52batista@hotmail.com)