29 agosto 2007

Admite

Admite Fábio Reynol 

Lamento admitir, mas o Nelson Rodrigues tem razão, o amor não morre. Nunca. Por mais que o enterremos, o afoguemos, tentemos esfaqueá-lo, esquartejá-lo ou incinerá-lo, ao contrário do frágil ódio, o amor perdura. O amor que foi continua sendo. Mesmo se a decepção, a traição, o rancor, o ciúme, o egoísmo ou a morte tenham destruído um relacionamento, o amor que um dia aconteceu é para sempre. 

Podes sentir ciúme dos “ex”s de tua amada. Aqueles que passaram pela vida dela carregam um todo dessa mulher que tu nunca vais ter. Do mesmo modo, as ex-namoradas de teu marido das quais “roubaste” o cargo de esposa, roubaram de ti românticos capítulos da juventude desse homem que jamais terás. Mesmo que hoje ele as odeie, as despreze e nunca mais as veja, um todo de cada uma delas está presente nele. Para sempre.

Quem pode roubar de nós o primeiro beijo roubado? O primeiro é o primeiro. Se tu não foste o autor do primeiro, tu serás, no máximo, o primeiro de língua, o primeiro na padaria, o primeiro com aparelho nos dentes... O primeiro mesmo, meu caro, já foi e dela ninguém tira. Admite.

Admite o quão verdadeiros foram as confissões cafonas ao pé-do-ouvido, as primeiras flores recebidas, as fugas e desculpas para ver o “grande amor da minha vida”, o beijo flagrado naquela tarde embaixo da mangueira e que só foi o que foi porque teve um beijo, um abelhudo e uma mangueira que jamais voltarão. Não precisam. São eternos. Ainda que o amado tenha sumido, o abelhudo, morrido e a mangueira, sido cortada.

Admite que teu amado de hoje foi aprimorado pelas outras mulheres que ele amou. Que as flores que recebes hoje são filhas do primeiro buquê que ele comprou cujo perfume ainda está nele. Admite que a paciência dele com tua TPM foi conquistada por outra menina que não contou com a mesma complacência. Que as delicadezas que ele hoje tem contigo não vieram das conversas com os amigos, mas de aulas práticas ministradas por almas do sexo feminino.

Admite que tua mulher não virou mulher em teus braços e que nem por isso é menos encantadora do que aquela primeira que te fez homem. Aceita o fato de que o olhar carinhoso que hoje te derrete foi ensaiado em outros rapazes e que os beijos que agora recebes são jóias lapidadas por outras bocas. Graças a elas, não recebeste um diamante bruto.

Admite que teu amado não é teu. Há nele algo tão “ele” que jamais terás, feito de partes que outras tiveram, feito de um todo que também levarás.

Admite que tua amada não é tua. Há nela um Bruno, um Carlos, um Luís tão dela quanto ela mesma. Amores verdadeiramente amados que nunca morrerão e que a fazem ser quem é, que fazem todos ser quem são. 

Admitir isso é o começo do amor.

21 agosto 2007

A última grande sessão

Para quem nasceu na pequena Carnópolis na década de 1940, sem televisão, nem motel, o Cine Xavante era a opção para as descobertas do amor. Não dava para fazer tudo, mas chegava bem perto. O escuro da sessão proporcionava o único ambiente lícito privado o bastante para arrancar o primeiro beijo, arriscar as primeiras saliências e se aventurar nas voluptuosas reentrâncias. A depravação no Xavante deixava o filme num quarto plano, o que deve ter feito os Lumière sapatear na cripta ao ver o que fizeram de sua invenção.

A sem-vergonhice se desenrolava em silêncio. Isto é, na medida do possível porque ninguém controla um chilipi ao recolher a baba pós-beijo, ou o discreto nheque-nheque das poltronas de madeira ou até um intrigante funhé-funhé que provocava a mente da audiência desacompanhada que só imaginava os mais insólitos lugares de onde poderia ter partido aquele som.

Qualquer movimento mais ousado tinha de esperar uma cena de ação bem barulhenta. Por essa razão, os faroestes com seus tiroteios e os filmes de guerra repletos de explosões eram os preferidos dos assanhados. Foi numa dessas tentativas de encobrir um nhóinque-reinque seguido de um fichóinque que a coisa emporcalhou de vez e condenou a maior diversão da cidade.

Era uma daquelas matinês de sábado no Xavante. A sala estava lotada. Ademar e Berenice conseguiram o melhor lugar, na última fileira. Na frente deles, ficaram Ernesto e Dinorah, logo atrás dos namoradinhos Adelaide e Jair que estavam em frente às nucas de Lindaura e Rodolfo, que por sua vez sentaram no primeiro corredor antes do próximo bloco de poltronas. À frente destes só a cadeira de jatobá de Horário, o lanterninha.

Ademar foi o culpado. Mal as luzes se apagaram, ele já estava se atarracando à cintura de Berenice. A coisa foi esquentando, os outros casais, se aconchegando e a sala inteira se dividiu entre os que se lambuzavam e os que se divertiam assistindo a pouca-vergonha alheia. O filme só servia para mudar as nuances de luz sobre o verdadeiro espetáculo. Com a testosterona nas alturas, o descarado Ademar só esperou a primeira explosão na tela para aplicar o seu nhóinque-reinque-fichóinque sobre a pobre (mas não menos sem-vergonha) Berenice. O óinque foi perfeito; o reinque, razoável, mas na hora do fichóinque... Ademar – que era halterofilista – agarrou a poltrona de Berenice pelo encosto com tanta força que desengatou a fila de cadeiras. A fileira toda desceu a rampa até o primeiro corredor.

Com o barulho do filme, poucos notaram o incidente. Ademar beijou o ar e logo depois o carpete mofado do Xavante. Berenice escorregou para os braços de Ernesto que percebeu a mudança de mulher logo depois que lavou a orelha de Berê com sua língua e notou um brinco bem maior que o da namorada. Adelaide sabia que Jair não possuía dotes avantajados, mas de repente notou que havia muito menos por lá desde a última vez que ela havia visitado o local. O que ela apalpava era a intimidade de Dinorah, que por sua vez nunca tinha experimentado sensação tão boa.

O coitado do Jair foi a decepção de Lindaura. Acostumada com o volumoso Rodolfo, a moça viu aquela massa desaparecer de uma hora para outra. Pensou que o namorado havia perdido o interesse por ela. Dupla injustiça. Jair estava no auge de seu interesse e Rodolfo, sempre distraído, entregou-se de corpo e alma sem perceber que sua cadeira havia deslizado um degrau abaixo.

Horácio foi quem recebeu os cuidados de Rodolfo. O jovem fogoso agarrou a mão do lanterninha pensando ser a de sua amada e a trouxe ao alto da coxa. Levou uma lanternada em seu parque de diversões. Seu berro foi ouvido da praça. Seo Olavo, o projetista que dormia durante as sessões, acordou assustado e acendeu as luzes.

O constrangimento atingiu até os que não haviam participado da dança das cadeiras. Só se ouviam burburinhos, e zíperes subindo, camisas fechando e gente tentando se recompor. A descompostura no Xavante virou o assunto da cidade. O cinema viu a bilheteria minguar com as famílias proibindo os jovens de freqüentar aquele antro da sétima arte. Em pouco tempo fechou as portas. Os casais se recuperaram do incidente, com exceção de Dinorah que fez questão de terminar com Ernesto. A moça começou a se aproximar de Adelaide que passou a evitá-la a todo custo.

Nunca mais Carnópolis teve outra sala de cinema. Depois de mais de trinta anos, os novos jovens da cidade viajavam para a metrópole vizinha para apreciar a telona. Mas iam só assistir a um filme. Juventude esquisita.

13 agosto 2007

Mamodecobra Parte IV - O Sacrossanto Direito à Impunidade

Mamodecobra Parte IV
Capítulo 7.761
O Sacrossanto Direito à Impunidade


“Cadeia”, eis um vocábulo completamente desconhecido no métier corruptivo brasileiro. Afinal a Justiça do Brasil é uma máquina extremamente eficiente e automática, é colocar notas graúdas de um lado e obter a impunidade do outro, mas calma lá: não estamos falando de subornos ou propinas. Neste país, quem segue a cartilha processual e contrata bons advogados só conhecerá uma prisão: a de ventre.

Essa magnífica estrutura judiciária em prol da impunidade ainda é respaldada pela Constituição Federal. Na Carta Magna, o Legítimo Direito à Impunidade é chamado de Legítimo Direito de Defesa. A ampla defesa permite muito mais do que a pura e simples defesa. Aliada a uma infra-estrutura forense caduca e desinformatizada, ela gera o ambiente perfeito para a instalação e a proliferação da impunidade crônica.

Dinheiro, o melhor amigo do corrupto

Claro que isso tudo está condicionado àquele bom e velho amigo do corrupto, o dinheiro. A qualidade da defesa é proporcional à quantia investida em advogados. Não sai barato. É bom lembrar que é preciso manter advogados em todas as comarcas em que o processo for sendo arrastado com a barriga. Além disso, honorários advocatícios também incluem as quantias envolvidas nos processos. Em bom português: se você ganhou milhões superfaturando viadutos não pense que escapará da cadeia sem abrir mão de boa parte dessa fortuna.

Se quiser um investimento seguro anote: não invista em ilhas, apartamentos suntuosos ou carros caros, aplique seu suado dinheirinho desviado em advogados caros. Até hoje não vimos nenhum corrupto de alta estirpe morando no xilindró ou debaixo das pontes que ele superfaturou. A mais austera pena que um rico já levou por aqui foi uma “prisão” domiciliar na própria mansão, essa atrocidade foi considerada uma falha no sistema.

O bom advogado conhece todas as ferramentas para protelar um processo até que os crimes prescrevam. Além dos tradicionais recursos, é possível ajuizar mais de uma centena de petições que vão desde documentos ligados ao processo até uma requisição para saber se a anágua da juíza ornava com a cor dos olhos do procurador geral; só para ganhar um tempinho até a petição ser indeferida.

Porém os louros não vão só para o advogado. O Judiciário contribui bastante para que a penitenciária seja um pesadelo impossível para o corrupto brasileiro. Há fóruns em que ninguém sabe onde enfiaram o processo, quando o encontram já está na época do recesso dos tribunais e o corrupto ganhou alguns meses sem ter que pagar nem um centavo a mais por isso.

Privilegie o seu foro

Outro ótimo negócio para o bom corrupto é tornar-se uma autoridade com foro privilegiado. Isso significa que você só poderá ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, dependendo da bocada que você conseguiu. Encabeçando as instâncias finais de todos os processos do país, o STF e o STJ não conseguem acelerar as ações movidas contra as autoridades, pelo contrário, a tartaruga processual engata a marcha reduzida. Virar juiz, vereador, deputado, prefeito, governador, presidente, etc. não é só uma maneira de você ampliar o seu poderio corruptivo é também um caminho tranqüilo para escapar da punição. É o céu para a ladroagem VIP.

Você não tem foro privilegiado? Não se preocupe: roube com quem o tem! Se o processo do VIP for para Brasília, o seu poderá ir junto. Há como alegar que instâncias diferentes não devem julgar os mesmos fatos. Desse modo, se você for co-réu num processo que envolve também uma autoridade de foro privilegiado, há muita chance de você ter sua ação promovida para a capital, onde será mantida em geladeira federal até estragar.

Punição, como acabar com esse mito

Vamos à nossa tradicional seção de exemplos:
Você construiu um Fórum e usou nessa obra dinheiro suficiente para fazer cinco Taj Mahals com domos de ouro maciço. Selecione entre os réus quem têm foro privilegiado. Peça o foro especial e então entupa o STJ e o STF com mais de 70 petições dos mais variados temas. Você ficará impressionado com o número de crimes que irá caducar antes mesmo de você ser intimado a depor.

Consegue foro privilegiado e serão salvos tu e tua família

Enquanto era prefeito você construiu um túnel sob um rio que custou mais do que três Eurotúneis sob o Canal da Mancha. Se você ainda tiver popularidade, lance sua candidatura a vereador, deputado estadual ou até mesmo federal. Ao ganhar a eleição, seu processo será transferido para Brasília. Até que o STF decida se família unida escapa unida ou separada, sua mulher e seu filho envolvidos na lavagem do dinheiro estarão tranqüilos e o processo contra eles, suspenso.

E lembre-se: corrupto idoso tem atendimento preferencial. Acima de 70 anos, os crimes prescrevem na metade do tempo. Nada mais respeitoso a quem tanto contribuiu para a instauração da mais rica de nossas culturas: a da corrupção.

07 agosto 2007

Gafanhoto vai ser papai

Fiz esta fábula sob encomenda para o Dia dos Pais para a Scritta . Ficou bonitinha, postei aqui.

Gafanhoto vai ser papai
Fábio Reynol

No mundo dos insetos, o besouro é o guru e o gafanhoto, um embrutecido soldado. Explicado isso, entenderás o seguinte diálogo travado entre indivíduos dessas duas espécies num jardim qualquer da existência:
- Nunca pensaste em ser pai, gafanhoto? – indagou maliciosamente o besouro.
- Fui pai de mais de sessenta filhotes. Isso é mais filho do que muitas espécies sonhariam em ter, senhor besouro. Inclusive a tua.
A alfinetada não tirou o inseto gorducho do sério. Pelo contrário, iniciou a fogueira da passionalidade que o besouro pretendia alimentar com mais provocações:
- Pois digo, ainda que tivesses mais de cem filhos não saberias nem de perto o que é ser pai.
O gafanhoto perdeu as estribeiras:
- Quantos filhos tiveste, besouro? Cinco? Sete? Não consegues povoar nem o próprio ninho e estás querendo me dar lições de como ter filhos?
A discussão estava ficando do jeito que o besouro queria:
- Tu sabes melhor do que ninguém como ter filhos. Estou dizendo que tu não sabes o que é ser pai. Tive somente seis rebentos em toda a minha vida. Preferi a qualidade à quantidade. Sei onde estão esses seis, o que fazem, conheço meus netos. Garanto que não sabes nem se os teus filhos estão vivos. Mais da metade já deve ter sido engolida ainda na infância por algum pardal.
- Pois eu posso cuidar de uma prole melhor do que tu, com certeza. E meus filhos...
- Falar é fácil... - interrompeu o besouro a reação furibunda do gafanhoto.
- O que queres dizer? Estás falando isso porque estou velho para ser pai novamente e não poderei provar isso, não é?
O besouro deu um sorriso. O gafanhoto chegou exatamente no ponto pelo qual o besouro estava esperando.
- Estás confundindo a paternidade com tuas funções reprodutivas. Se te consideras um bom pai, sempre há como prová-lo.
- Se estás pensando que vou atrás de meus filhos só para ganhar uma aposta, pode ir tirando tuas mandíbulas do orvalho...
- Não é preciso ir muito longe. Há uma criança sem pai nem mãe neste jardim que só precisa de um gafanhoto que dela cuide.
Quando o gafanhoto percebeu, já tinha caído na armadilha do besouro. Se rejeitasse a missão, estaria provada a sua incompetência como pai. O jeito era conformar-se:
- Tu és muito esperto, besouro. Onde está o gafanhotinho?
- Não há gafanhotinho algum. A criança é uma joaninha que teve os pais devorados por um canário do reino.
- Uma joaninha?! – berrou o gafanhoto – Estás de brincadeira? Não vou ser pai de bicho de outra espécie.
- Exatamente. É nesse ponto em que a paternidade mora: proteger e ensinar uma criança seja ela gafanhoto, joaninha ou centopéia. E, como eu pensava, você não nasceu para isso...
O besouro sabia cutucar o ponto frágil do gafanhoto, o brio. A contragosto e extremamente irritado, o velho gafanhoto aceitou a missão e o besouro conseguiu se livrar da pentelha joaninha que não o deixava em paz.
A joaninha deu um trabalho estafante ao gafanhoto. Ela não sabia voar, nadar, pular nem se defender como os gafanhotos. Para mantê-la viva, o gafanhoto tinha de estar ao lado dela durante o dia inteiro e às vezes lutar com predadores bem maiores do que ele. Para livrar a filha dos perigos futuros, o gafanhoto ainda lhe ensinou tudo o que sabia sobre a vida. Todo o esforço tinha de ser feito para que a joaninha chegasse à idade adulta.
Quando esse dia chegou. O gafanhoto foi orgulhoso apresentar ao besouro a filhota já crescida para se despedir do grupo. Assim que ela bateu as asinhas vermelhas e desapareceu entre as folhas, o gafanhoto sentiu uma tristeza profunda.
- Acho que agora tu és pai – declarou o sábio besouro.
O gafanhoto nem respondeu. Com a deliciosa sensação do dever cumprido, morreu poucos dias depois porque, como já foi dito, ele estava velho. No enterro não apareceu nenhum de seus filhos gafanhotos.
A joaninha? Bem, ela também não compareceu porque tinha um chá-de-panela de uma amiga libélula... Mas o fato é que ela foi mais filha do que os outros e ponto final.

02 agosto 2007

O Chilique dos Chiques


Milionários do Brasil uni-vos e esperneai! Tirai vossos Rolexes e Cartierzes das gavetas, arrancai dos closets vossos paletós Armanis, com coletes Hugos Bosses e calças Pierres Cardins. Fardai-vos com vossas estolas de vison e taillers Christian Diors e borrifai nas faces vossos Cocos Chanéis calçando Guccis e Giannis Versaces. Façai uma carreata de Ferraris, Maseratis, BMWs, Jaguares e Mercedes Benzes e estacionai vossos SUVs em frente ao Palácio do Planalto e no espelho d´água do Congresso! Pois o tempo é de protesto!

A corrupção acaba de bater às portas dos condomínios de alto padrão. Que corrupção é essa, meu Deus, que não respeita mais nem os ricos? Foi-se o tempo em que havia consideração pelos que tinham muito. Agora a Infraero está tirando os jatinhos da rota e o buzanfã da reta. Não se viaja mais com classe – nem na econômica! E até as balas, que costumavam se perder só na Zona Norte, estão passeando pelo Leblon. Inadmissível! Bordai com Swarovskis em vossas t-shirts Yves Saint Lauren, o vosso garrafal e chiquérrimo: CANSEI!

Mostrai ao povo que não são só os excluídos que sabem gritar, mas bon vivants, playboys e socialites também podem dar os seus berrinhos histéricos. Provai que muito mais elegante que o Grito dos Excluídos é o Chilique dos Endinheirados. Num país em que se ganha no grito, todos acabam surdos. Com exceção da Justiça, que no Brasil é cega, surda e muda de nascença.