27 junho 2007

Tristes crônicas de um país sem graça

1997
Era uma noite quente de abril quando cinco estudantes bem alimentados e educados sob os auspícios da fina flor da sociedade brasiliense se cansaram de seus videogames e resolveram sair às ruas à caça de brinquedos mais emocionantes. Os mimos dados por papai e mamãe não mais satisfaziam os impulsos desses meninos sapecas e cheios de energia.

Um deles ofereceu o carro – outro brinquedinho patrocinado por papai – e os demais embarcaram. Não demorou para a capital federal lhes apresentar uma diversão digna de gente de alta estirpe. Avistaram uma construção pública que lhes era completamente estranha. Sabiam que chamavam aquilo de “ponto de ônibus”, para eles algo absolutamente inútil. Como podem gastar dinheiro público com coisas assim? Pensavam. Aquilo só servia para oferecer abrigo a quem se utilizava do transporte público, outro conceito que eles não conheciam nem de perto. Ademais, nunca se imaginaram colocando seus abonados buzanfãs tratados a talquinho italiano num banco de concreto tão nojento.

Naquela noite estrelada, eles descobriram que o dito equipamento público tinha outra função que era muito mais nociva à sociedade dos meninos educados. O ponto também servia de abrigo a indigentes que, como o próprio nome diz, são menos que gente. Essa espécie se enquadra numa categoria entre os cachorros e os ratos, uma vez que muitos cães encontram abrigos quentes e sociedades que os protegem e os ratos se escondem nos esgotos para não se exporem em pontos de ônibus. Imagine a indignação experimentada pelos rapazes ao encontrar naquela parada de ônibus um desses indivíduos que emporcalhavam a cidade com a própria existência.

Numa atitude patriótica e de cunho sócio-saneador, o grupo que estudou nas mais caras escolas da cidade decidiu cauterizar aquele cancro social. Imbuídos desse nobre dever cívico, espalharam combustível o mais uniformemente possível sobre aquela subpessoa que ousara nascer num mundo muito mais educado do que ela. Riscaram um fósforo e observaram com atenção (como convém aos que conhecem o método científico) como se comportava o fogo ao queimar um material tão vil e de tão pouca serventia. Satisfeitos, voltaram para casa com a sensação do dever cumprido e admirados com a própria capacidade de unir prazeres e obrigações. Dormiram tranqüilos.

No dia seguinte, o mundo desabou sobre suas iluminadas e endinheiradas cabecinhas. Só metade de sua contribuição à sociedade havia se completado. O alvo tinha sido eliminado, é certo, só que ele não era um indigente, mas um índio o que o colocava numa categoria ligeiramente superior aos moradores de rua, ainda que não gozasse do status de “gente”. Claro que além do amparo dos poderosos papais que vieram em seu socorro, havia também a eloqüente justificativa que pesou em seu favor: “Foi mal! Pensamos que fosse um mendigo!” A “Justiça”, que por cinismo ou deboche gosta de usar esse nome no Brasil, nem considerou homicídio, preferiu classificar a estripulia como “agressão física”. Afinal, o que matou o índio foram as queimaduras não o ato dos marotos.

Quatro passaram pouco tempo em pseudo-prisões de onde saíam para tomar cerveja e fazer faculdade (afinal eram educados!). Desde 2004, estão sob liberdade condicional, ou seja, condicionada a que não cometam mais diabruras nem gestos de crianças mal-educadas. O quinto nem foi incomodado porque era menor (ops!) criança!

2007
Cinco capetinhas da crème de la crème carioca, satisfeitos por viverem num país em que há “Justiça” (eles nunca notaram a sutil piadinha por trás dessa palavra) também saíram à noite a brincar e a gastar a mesada que os papais lhes davam. Eles se esbaldavam numa fresca madrugada de junho na Cidade Maravilhosa, quando se depararam com aquela aberração que o governo insistia em manter nas vias públicas: o ponto de ônibus. Sob o abrigo, identificaram outra subespécie que não deveria jamais conviver com seres humanos: a das prostitutas. Cheios de altivez moral, não pensaram duas vezes em sair de seu carro e limpar o quintal de casa dando uma boa surra nessas criaturas que tinham a petulância de se intitular “mulheres” e ainda mais “da vida”.

Pecaram pela desobediência. Lembra quando a mamãe falava para não deixar os brinquedinhos largados por aí? Pois é. Deixaram o carrinho de ferro solto na rua e enquanto brincavam de defender o bom nome da high society carioca, um taxista anotou a placa do dengo que papai havia dado. Por absoluto azar, uma das mulheres espancadas resolveu prestar queixa. Para o espanto da molecada, aquela pessoa (agora podemos chamá-la assim) tinha um status mais elevado em seu ranking sócio-biológico das espécies. Era uma empregada doméstica! Daquelas do mesmo tipo que eles tinham em casa e que lavavam as suas cuequinhas. “Mil perdões! Foi mal! Pensamos que fosse uma prostituta!”

2017
A madrugada chegou fria e úmida numa metrópole brasileira. O governo já eliminara o mal que um dia havia gerado tanta revolta e indignação popular: o ponto de ônibus. Agora não existia mais abrigo para as criaturas economicamente rastejantes que emporcalhavam o cenário urbano. Cinco meninas bem maquiadas da classe média-chique da cidade, felizes por viverem num país em que funcionava a Justiça (naquela época o termo já havia adquirido outro sentido o que eliminou de vez a jocosidade e as aspas) saíram para a balada a se divertir e a exibir as novas Pradas e Louis Vuittons combinantes com os seus novos tons capilares de Loreal Paris. Uma delas, em meio ao barulho da boate, não conseguia falar com a amiga pelo celular, por isso foi à calçada tentar escutar melhor o seu MotoBlackBeltBerryExibition de oitava geração.

Por pura ironia do acaso, a moça parou sobre aquilo que um dia havia sido um ponto de ônibus. Por um azar só explicável pela conjunção astral daquela noite, passavam naquele exato momento cinco garotos recém-foragidos do Gueto Fluminense (ex-Baixada). É bom explicar que o governo, numa sábia decisão em prol do saneamento público, houve por bem murar todas as favelas e áreas periféricas consideradas de alto risco (leia-se: baixa renda). Só saíam delas os oficialmente credenciados, o que não era o caso dos garotos em questão. Pensando que se tratava de um brinco caro, os rapazes arrancaram num puxão o MotoBlackBeltBerryExibition da moça. Na verdade, o microaparelho era muito mais caro do que a maioria dos brincos caros, pois era cravejado de pedras preciosas e ainda fazia projeções holográficas com progressive scan. Todavia, os rapazes não estavam nem aí para o progressive scan da menina e também arrancaram a Prada Snobation de US$3.800,00, uma das poucas da cor fúcsia vivant que a garota possuía. Não contentes com a feira já garantida, os garotos sentiram um ímpeto não se sabe de onde de espancar a moça. Deixaram-na semimorta sobre aquele ex-ponto de ônibus.

Foram todos presos. Desta vez, não haveria perdão. Iriam pegar 15 anos de cana cada um numa penitenciária com grades, carcereiros e superlotação. Não eram meros meninos sapecas, mas marginais formados pela escola do crime (já que a escola pública não lhes abrira as portas). Os pobres ainda tentaram, em vão, lançar mão de um antigo atenuante: “Desculpa aí! Foi mal! Pensamos que era uma socialaiti!”

20 junho 2007

A Sala de Entrevistas Íntimas

Aconteceu numa dessas visitas de escolares ao Senado Federal brasileiro pelos idos de 2085:
- Aqui é a sala de entrevistas íntimas – explicava o guia sem apresentar um pingo de constrangimento. No início, sua face enrubescia nesse ponto da visita, todavia a convivência com os membros da casa o fez absorver e reproduzir com requintes de despudor os semblantes dos parlamentares.
- Para que serve a sala de entrevistas íntimas? Este era outro momento embaraçoso para o guia no começo de sua carreira. Em pouco tempo, porém, percebeu que pudor era um predicado não só indesejável naquele local como também era totalmente incompatível com qualquer função que pudesse lá ser exercida. Isso incluía as funções do presidente da casa às da mocinha responsável pelo cafezinho superfaturado lá degustado.
- Nesta sala – respondeu abrindo a porta - membros da imprensa e do Senado podem se relacionar trocando as mais íntimas informações sem riscos de serem interrompidos ou incomodados por uma CPI ou pela Comissão de Ética. Neste espaço, os membros são livres para um relacionamento franco, direto e aberto com os órgãos de imprensa. O guia adorava elaborar essas frases de duplo sentido. Era uma vingança em alto estilo à deputação em que se tornara o serviço parlamentar no Brasil (esta também era uma frase do guia).
- Por que uma cama? Mesa e cadeiras não seriam mais apropriadas? Perguntou outro aluno com uma falsa ingenuidade estampada na face. O guia já estava acostumado e preparado para perguntas muito mais capciosas do que essa.
- O mobiliário anterior era o de uma sala de reuniões padrão. Os parlamentares, porém, começaram a reclamar de terríveis dores nas costas. A gota d’água foi quando um senador de sobrepeso acabou arrebentando a mesa e caindo sobre a jornalista que o entrevistava. O microfone escapou incólume, mas a moça, coitada, teve outra sorte. Acredite, a imprensa fica furiosa quando quebram suas costelas. A repercussão negativa durou meses e fez a assembléia aprovar o novo mobiliário que também incluiu o banheiro com sauna e hidromassagem.
- Para quê o espelho no teto? Essa já foi uma provocação clara e grossa de outro pré-adolescente, mas que a experiência do guia já o fazia responder com elegância.
- O espelho? A imprensa tem a necessidade de olhar todos os ângulos da notícia. O parlamento, por sua vez, gosta de encarar quem lhe prende o rabo. Devolveu o guia, surpreso com a maestria da resposta recém-inventada e continuou o tour sem perder o rebolado: - É importante que vocês saibam que o Senado foi o pioneiro na adoção das salas de entrevistas íntimas. Esse modelo foi depois copiado pela Câmara dos Deputados, pelas assembléias estaduais e até por centenas de câmaras municipais por todo o país.
- Por que o Senado foi o primeiro? – agora o guia se espantou com a pergunta franca e sem malícias.
- Foi por causa de um problema do início deste século, quando um presidente do Senado se embaraçou ao ser descoberto pagando uma pensão a preço de ouro para uma filha que teve com a imprensa. Ele havia tirado dinheiro da própria propina, pedindo para seus lobistas fazerem o pagamento. A partir daí foi sendo elaborada uma legislação para o resguardo parlamentar que primeiro vetou o uso de verbas propinatórias no pagamento de pensões, depois foi promulgada a lei 523.724/2023, que instituiu a obrigatoriedade da vasectomia ou do ligamento de trompas parlamentar.
- Desde então, isto aqui virou uma putaria... – disparou o mais encapetado da turma.
O guia, inabalável, de modo algum perdeu a classe:
- Pelo o que vejo o senhor é bem fraco em História. A putaria, meu caro, sempre existiu neste país. Nós só eliminamos a hipocrisia!

15 junho 2007

Não use lobista, use camisinha.

Em apoio à campanha nacional de controle de natalidade, o Diário da Tribo lançou no Congresso Nacional o refrão: “Não use lobista, use camisinha”. A campanha vem em hora oportuna em que a maioria dos congressistas deixou a assessoria de lado e passou a cuidar pessoal e intimamente de suas relações com a imprensa. Claro que esse enorme empenho para conseguir penetrar na mídia vem dando frutos. O mais novo desses frutos é a filha do presidente do Senado. Apesar de não ser um veículo de sacanagem, o Diário da Tribo pretende explicitar as relações entre a imprensa e política. Melhor tirar as crianças da frente do monitor.

Encabeçando a teoria da conspiração de hoje, a Rede Globo. Mônica Veloso, mãe da filha de Renan Calheiros, é ex-funcionária da Globo. O que tem isso? Bem, se voltarmos sete aninhos no tempo, veremos que a mesma Globo era a empregadora da mãe de um filho de um presidente ainda mais ilustre, o da República. Miriam Dutra também estava no quadro da Globo quando pariu seu FHCzinho. Resta a pergunta, estariam as amantes de Lula e de Maluf (também pais bastardos) na folha de pagamento da Globo?

No vale-tudo pela informação, a Globo vai onde a notícia está (ou onde ela pode ser arrancada depois de uns dois drinques). Contratando jornalistas na fase mais fértil de suas carreiras, a emissora conseguiu informações quentes (e úmidas) além de obter amostras valiosas de sêmen para pesquisas de identificação do gene da corrupção. Ela só se esqueceu de colocar em seu manual de redação um veto ao recebimento de pensões através de lobistas. Um escândalo.

Até onde iria a Globo para conseguir informações? Enviaria Reinaldo Gianichinni para arrancar depoimentos (e suspiros) do deputado Clodovil Hernandes? A verdade é clara e escandalosa: a emissora não só omite as sacanagens de Brasília, como participa delas. E o pior: ao incentivar a reprodução descontrolada de políticos, a emissora promove a disseminação do gene da corrupção que acaba se perpetuando e enchendo o país de novos congressistas. O povo não é bobo, fora da cama, Rede Globo!

11 junho 2007

Eu tô na Língua!

É com a alma sacolejada na centrifugação anárquico-fantasiosa da literatura universal brasileira que vos comunico essa boa nova: estou na revista Língua Portuguesa deste mês!

Não. O careca da capa não sou eu, é o Rubem Alves. Eu participo com “O Vendedor de Palavras”. O conto ainda deve ser indicado ao Oscar de melhor roteiro e se tornar a primeira obra a render, por si só, um Nobel de Literatura (o primeiro do Brasil).

Com isso, não aceitarei uma mera indicação à Academia Brasileira de Letras, sererei (sic) seu presidente logo de cara. Meu primeiro decreto será substituir o tradicional chá pelo vanguardista chope gelado, bebida muito mais eficiente no auxílio da fluência vocabular.

Não poderia deixar de agradecer às presidentas do meu Comitê de Campanha pró-ABL, Janete Stela Domenica e Pseudônimas Associadas. Ela arriscou sua carreira no mundo das letras e a de seus mais de 90 pseudônimos, organizando a minha campanha “Vote ni mim; Paulo Coelho também não era bom, assim!”

Neste país de funcionalidades, serei mais um acadêmico funcional que sabe assinar o próprio nome para autografar os próprios best-sellers.

Bem, isso tudo foi para dizer: comprem a bendita revista! E deixem claro para a editora que não foi por causa do careca da capa! (nada pessoal, Rubem!)

01 junho 2007

Como escrever uma carta de amor

Nesta época do ano, às vésperas do Dia dos Namorados, renasce a mesmice, viceja a falta de originalidade e resplandece os chavões “minha vida sem você...”, “amo mais do que tudo...”, “I love you, baby...” Afinal, tirar flores diferentes do mesmo canteiro a cada ano não é mole. Se você trocou de namorado(a) há menos de um ano, pode lançar mão de um recurso eficiente e de extremo mau gosto: usar a mesma mensagem enviada ao “ex” no ano passado para o novo parceiro. Àqueles, porém, que quiserem dizer a mesma coisa com palavras completamente diferentes, dedico esta modesta receita de declaração de amor.

Nesta atividade estão excluídos recursos narco-etílico-inspiradores que, apesar de mostrar certa eficácia, podem causar dependência além de produzirem frases só inteligíveis para os que fizerem uso dos mesmos subterfúgios. Mantida, pois, a sobriedade, vamos ao trabalho.

Ingredientes

Os românticos vão me desculpar, mas só amor não basta para fazer uma carta de Dia dos Namorados. É preciso um algo a mais, um veículo para a sua mensagem, uma pipa para o vento da sua criatividade, uma carruagem para levar seus nobres sentimentos, um altar para imolar as palavras, ou seja, você vai precisar de papel e caneta. Porém, atenção: se sua letra for tão bonita quanto um ensaio sexy do Ronaldinho Gaúcho, não pense duas vezes, recorra à dupla computador e impressora.

Ter um destinatário ajuda. Entretanto, o fato de não ter namorado(a) não impede a elaboração de uma carta de amor. Todos saímos de fábrica com um modelo idealizado do amor. Não sabemos explicá-lo, mas até o mais distraído dos mortais conhece o “jeitão” dele. Vá até esse compartimento interior, desatarraxe o modelo e tire dele suas palavras de amor.

Preparo

Escreva-as mesmo se não houver ninguém para recebê-las agora. O texto, se guardado em local fresco e seco, terá validade indeterminada e poderá servir vários destinatários contanto que o namorado em exercício não desconfie estar recebendo palavras de segunda-mão.

Munido desse molde de amor, papel e caneta, tranque-se num lugar tranqüilo (até banheiro está valendo). Pense em tudo que lhe dá prazer: novela, futebol, cachaça, cinema, cama, sonhos, nuvem, poesia, dança, chá, praia, montanha, árvore, chocolate, chácara... Cheiro de mar, de terra molhada, de chuva no chão, de brinquedo novo, de brisa de lagoa, de perfume antigo, de banho fresco... Ouça pássaros, canções de amor, vento passando, uma voz bonita, o silêncio. Se nenhuma palavra lhe vier à cabeça, se os sonhos ficaram mais fortes e se deu uma vontade louca de sair beijando o mundo, você se encontrou.

Diga a esse seu recém-conhecido “eu” o quanto você o admira e que falta fazia a consciência da sua presença. Gente de mal de si mesma, ensimesma-se, abrocha-se e murcha. Regue seu jardim de paz e adube seu coração com liberdade para não sufocar depois o canteiro de outrem com o modelinho quadrado e reduzido que você tinha do amor.

Finalmente, você ficará espantado ao perceber, de repente, que criou as palavras mais extraordinárias e originais sobre o amor:
“EU AMO VOCÊ!”